domingo, 6 de novembro de 2016

Os apóstatas (parte 1)

(Copiado do sexto capítulo de meu livro; clique aqui para ver a parte 2) A palavra apostasia geralmente é definida como abandono de crença, partido ou opinião. Pode ser abandono integral ou apenas de algumas ideias ou conceitos. Como a organização Torre de Vigia considera a si mesma como a continuação exata do cristianismo, todas as Testemunhas que defendem ideias ou conceitos divergentes são julgadas como apóstatas do verdadeiro cristianismo.


Veja a seguir as definições de “apostasia” e “apóstata” segundo essa organização religiosa:

Definição: Apostasia é abandonar ou desertar a adoração e serviço de Deus, na realidade uma rebelião contra Jeová Deus. Alguns apóstatas professam conhecer e servir a Deus, mas rejeitam ensinamentos ou requisitos delineados na Sua Palavra. Outros afirmam crer na Bíblia, mas rejeitam a organização de Jeová (Raciocínios à Base das Escrituras, página 41).

Como visto em capítulos anteriores, por “ensinamentos ou requisitos” bíblicos entenda-se apenas o conceito dessa organização religiosa sobre o que são de fato ensinamentos ou requisitos bíblicos (veja a definição de “apóstata” na imagem abaixo). Por “organização de Jeová” entenda-se a religião das Testemunhas de Jeová na figura de seus líderes.

Definição de “apóstata”, segundo o livro secreto “Prestai Atenção a vós Mesmos e a Todo o Rebanho”, edição de 1991, página 94:




Desde o começo de sua história, os líderes da Torre de Vigia tomaram por alvo demonizar a todos aqueles que discordavam dela. Como visto nos capítulos dois e três, os primeiros anos de Rutherford foram especialmente difíceis em razão do fracasso que fora 1914 e em razão do seu espírito autoritário. A reação de Rutherford foi condicionar as coisas para que todos os “opositores” lhe fossem tirados do caminho, mas não sem o evidente desejo de que estes viessem a desaparecer, que se extinguissem tal qual uma erva arrancada. Referente aos quatro diretores evolvidos no episódio de 1918, o livro Proclamadores do Reino cita com evidente satisfação que futuro teve os “opositores e seus apoiadores”.

O que aconteceu com os opositores e seus apoiadores? Depois da reunião anual de 1918, os opositores se separaram, e até mesmo resolveram celebrar sozinhos a Comemoração da morte de Cristo, em 26 de março de 1918. Qualquer união que porventura tinham durou pouco, e logo se dividiram em várias seitas. Na maioria dos casos, o número deles caiu e a sua atividade diminuiu ou cessou por completo.

Claramente, após a morte do irmão Russell, os Estudantes da Bíblia enfrentaram um verdadeiro teste de lealdade. Como disse Tarissa P. Gott, batizada em 1915: “Muitos dos que pareciam tão fortes, tão devotados ao Senhor, começaram a se desviar... Nada disso parecia certo, mas estava acontecendo e nos perturbou. Mas, eu dizia comigo mesma: ‘Não foi esta organização que Jeová usou para nos livrar dos laços da religião falsa? Não provamos a Sua bondade? Se a abandonássemos agora, para onde iríamos? Não acabaríamos seguindo algum homem?’ Não víamos motivo para acompanhar os apóstatas, por isso permanecemos.” — João 6:66-69; Heb. 6:4-6 (Proclamadores do Reino, páginas 68,69).

Referente ao primeiro parágrafo da citação, o que se gostaria de dizer é que os “opositores” e todos os que os apoiavam se extinguiram por completo, mas isso não é dito. Uma pesquisa na internet logo revelará que existem grupos que se declaram fiéis aos conceitos de Russell, sendo que alguns até têm extensão internacional.



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Quanto ao segundo parágrafo, os autores do livro falam acertadamente que os seguidores de Russell passaram por um “verdadeiro teste de lealdade”. Mas não dizem que permanecer leal ao grupo significava fechar os olhos para a falsa profecia de 1914, bem como para tantas outras que fracassaram até 1925. Uma Testemunha é citada como tomando a decisão de ser leal, uma vez que agir de modo diferente seria voltar à “religião falsa” e por fim acabar “seguindo algum homem” – como se fosse falsa a afirmação de que esse mesmo grupo, por toda a sua existência, foi claramente liderado por “homens”, os quais, através de reformas doutrinárias, fizeram questão de provar em quanta falsidade religiosa se acreditava por volta de 1918.
E desde então, assim como aconteceu por aquela época, sempre houve pessoas que, ao deixar o movimento religioso, procuraram tornar público o que realmente significa ser Testemunha de Jeová. 
De fato, muito se deve a essas pessoas o crédito pela intensa difusão, especialmente nos últimos 30 anos, de todas as falsas profecias feitas pelas autoridades religiosas que administraram e administram esse grupo religioso (veja o capítulo três, que aborda as várias datas marcadas para o fim do mundo). Os escândalos relatados no capítulo cinco (caso Nações Unidas, a perniciosa politica financeira e a política de proteção a acusados de prática da pedofilia) teria sua exposição restrita a um número pequeno de pessoas, caso não fosse o intenso trabalho de difusão feito por ex-Testemunhas. O capítulo quatro abordou o fascinante estudo da cronologia em torno da data de 1914, mas tudo isso só foi possível em resultado do extraordinário trabalho de pesquisa feita por Carl Olof Jonsson, que, como Testemunha, a princípio, desejou apenas dialogar com a liderança religiosa sobre as descobertas que fez. A não aceitação do diálogo proposto por ele acabou em sua excomunhão, mas salvou-se a pesquisa, e ela tem-se mostrado cada vez mais fundamentada à medida que mais descobertas arqueológicas vêm confirmar as suas conclusões feitas há cerca de 40 anos. Foi com base nos estudos de Raymond Franz que o capítulo dois abordou os argumentos usados pela a liderança das Testemunhas de Jeová para se perpetuar no poder. Segundo ela, toda a autoridade que possui foi-lhe concedida por Deus, mas, conforme vimos, não há nada na Bíblia que assegure a autenticidade desse ensino, até porque, como foi visto no capítulo quatro, toda ela está a depender da validade bíblica e histórica de 1914, que foi claramente provada falsa. 
Todas essas informações atualmente circulam nos meios de comunicação a uma intensidade e frequência cada vez maior. Especialmente com o advento da internet e maior acessibilidade a ela, a cada dia tem-se tornado mais difícil para a autoridade religiosa manter uma pose de paladino da boa moral, bem como esconder das Testemunhas o seu longo histórico de falsas profecias.
A atitude correta, nesses casos, quando estão envolvidas autoridades públicas, órgãos do governo, ou mesmo qualquer entidade de interesse público, seria expor-se voluntariamente à investigação. Mas como procede a liderança religiosa?
No que diz respeito ao histórico da religião, muitas coisas poderiam ser esclarecidas se todas as Testemunhas tivessem acesso a toda a literatura da religião desde os seus primórdios, lá pela década de 1870. Isso de certa forma pode ser comparado a quando alguém faz uma parceria de negócios com outra pessoa, ou quando faz um contrato de serviço com uma empresa; nesses casos, é recomendado que o histórico profissional da pessoa, ou da empresa, seja analisado, de modo a se ter mais garantias de sucesso nas relações de negócios. Mas a autoridade religiosa não faz absolutamente nada para que essa literatura antiga esteja à disposição das Testemunhas.
Poder-se-ia alegar os custos de impressão e tradução. Mas o argumento da tradução não é válido para os países de língua inglesa, visto que toda a literatura foi originalmente produzida em inglês, bem como também não se pode alegar o custo de impressão, visto que, para quase todo o mundo, a entidade religiosa também já disponibiliza suas publicações recentes por meios eletrônicos, como um CD-ROM e pela internet. Esses mecanismos podem ter espaço mais que suficiente – e quase gratuito – para armazenar os cerca de150 anos de literatura religiosa. Mas tem ficado claro que a autoridade não tem nenhum interesse em se servir dessas vantagens. Para a língua portuguesa, por exemplo, há literatura bíblica com boa tradução desde a década de 30, mas o CD-ROM atualmente só trás a literatura a partir da década de 1970. Na internet, no site oficial da religião – JW.ORG –, só consta literatura lançada do ano 2000 para cá.
Em razão de não terem acesso a essa literatura antiga, e principalmente em países em que não predominam a língua inglesa, a maioria das Testemunhas de Jeová fica a depender apenas de duas fontes de pesquisa: as citações feitas pelo Corpo Governante e as feitas pelos considerados apóstatas.
Quanto à primeira fonte, nos capítulos anteriores, pelo que analisamos da literatura recente do Corpo Governante, vimos com quanta parcialidade isso é feito. Por exemplo, no capitulo dois, que foi examinado o termo “Corpo Governante”, ficamos sabendo que essa expressão só foi concebida por volta da década de quarenta e que, somente na década de setenta, passou a ter o sentido que se tem hoje. Apesar disso, a literatura atual procura fazer parecer que o Corpo Governante existiu desde o tempo de Rutherford, sendo, portanto, composto por ele e seus auxiliares próximos, pois somente assim pode afirmar que Deus escolheu, por aquela época - não Rutherford -, mas um “corpo governante” como Seu representante. No capitulo três, “Datas marcadas para o fim do mundo”, ficou mais que evidente o quanto a liderança atual procura esconder que seus antecessores estiveram diretamente envolvidos em marcar datas para o fim do mundo, e com palavras nada duvidosas. No capitulo quatro, sobre cronologia, vimos que Russell esteve bem a par dos argumentos que, se levados a sério, derrubariam o seu castelo de cartas– todo ele erguido sobre a falsa data de 607 AEC. Mas a literatura recente, com o fim de inocentar Russell, faz parecer que ele era ignorante a respeito disso, dando a entender que os ajustes feitos foram em decorrência de descobertas posteriores.
Obviamente que essas falsas afirmações são constantemente refutadas pela literatura considerada “apóstata” – a segunda fonte de consulta disponível às Testemunhas.
Quanto a essa segunda fonte de informações, o Corpo Governante sabe muito bem que ela está repleta de citações de sua literatura, tanto recente como antiga. E é evidente que isso não é do seu agrado. Uma prova documentada a respeito disso consta no livro secreto Pastoreiem o Rebanho de Deus, à página 115:



Isso claramente indica que, caso estivesse em seu poder, essa liderança religiosa, além de não fazer absolutamente nada para disponibilizar sua literatura antiga, também faria todo o possível para tirar de circulação todo e qualquer livro e revista antigos que há em mãos de terceiros. Como isso não lhe é possível, resta-lhe colocar toda a literatura “apóstata” num índex geral de livros proibidos, tal qual fez a Igreja Católica em séculos passados. E veja com que justificativa se proíbe o acesso a qualquer informação elaborada por “apóstatas”:

De nada nos beneficia tentar refutar os argumentos de apóstatas ou dos que criticam a organização de Jeová. De fato, é espiritualmente perigoso e impróprio ler suas informações, quer em forma impressa, quer na internet (A Sentinela de 15 de maio de 2012, página 26).
É um engano pensar que você precisa ouvir os apóstatas ou ler as publicações deles para refutar seus argumentos. O raciocínio deturpado e venenoso deles pode causar dano espiritual e contaminar a sua fé como uma gangrena que se espalha rapidamente. (A Sentinela de 15 de fevereiro de 2004, página 28).
Por dar ouvidos ao Diabo e não rejeitar suas mentiras, o primeiro casal humano apostatou. Assim, será que devemos ouvir os apóstatas, ler suas publicações ou examinar seus sites na internet? (A Sentinela de 15 de janeiro de 2006, página 23).
Algumas das publicações dos apóstatas apresentam falsidades por meio de “conversa suave” e “palavras simuladas” (A Sentinela de 1º de julho de 1994, página 12).

Em adição a essas admoestações, uma revista A Sentinela de 1986 usou termos absolutamente claros sobre como as Testemunhas devem encarar a literatura considerada apóstata:
Quando outra pessoa nos diz: ‘Não leia isso’, ou: ‘Não escute isso’, talvez fiquemos tentados a desconsiderar seu conselho. Mas, lembre-se de que, neste caso, é Jeová quem nos diz na sua Palavra o que devemos fazer. E o que diz ele a respeito dos apóstatas? ‘Evite-os’ (Romanos 16:17, 18); ‘cesse de ter convivência com’ eles (1 Coríntios 5:11); e ‘nunca os receba no seu lar, nem os cumprimente’ (2 João 9, 10). Estas são palavras enfáticas, orientações claras. Se nós, por curiosidade, lêssemos a literatura dum apóstata conhecido, não seria isso igual a convidar este inimigo da verdadeira adoração à nossa casa, para se sentar conosco e expor suas idéias apóstatas? (A Sentinela de 15 de março de 1986, página 13).
Como se pode ver, a autoridade religiosa procura colocar o conceito dela como se fosse uma lei do próprio Deus; com isso, a Testemunha que quer ser obediente a Deus pensará duas vezes antes de se aventurar a ler algo produzido pelos “apóstatas”, e caso leia, pode, posteriormente, ficar com a consciência pesada por – na sua concepção induzida – ter sido desleal a Deus. É verdade que a Bíblia recomenda que não devemos ter associação íntima com promotores de falsidade religiosa. Mas esse conceito só é válido para quem está com a genuína verdade cristã, coisa que – pelo exame que fizemos – não é o caso das Testemunhas de Jeová. Sendo assim, proibir a que as Testemunhas leiam conteúdos produzidos pelos “apóstatas” serve a um único objetivo: mantê-las na ignorância a respeito dos graves erros históricos e recentes, os quais, se expostos a todas as Testemunhas, podia resultar em a religião cair num processo contínuo de esvaziamento até extinguir-se, ou, mais provavelmente, acabar-se por ser forçada a remodelar-se, curvando-se, assim, sob o peso de seus próprios pecados.
Como foi visto acima nas citações, nenhuma delas proíbe diretamente que Testemunhas leiam um livro apóstata. A linguagem fica mais na linha de exortação. Mas os pastores Testemunhas são orientados a cobrar explicações de todas as Testemunhas que, de alguma forma, foi flagrada (ou denunciada)  em posse de material apóstata. Nessas conversas, os anciãos desejam saber até que ponto a Testemunha ainda acredita que a organização Torre de Vigia possui a verdade. A Testemunha, por sua vez, servindo-se de alguns fatos, talvez a falsidade em torno de 1914 ou o envolvimento com as Nações Unidas, pode tentar argumentar com os anciãos, procurando induzi-los a ver o caso pelo lado da razão. Mas, quase que invariavelmente, os anciãos dão muito pouca importância a fatos, sejam eles quais forem; o que lhes interessa mesmo é saber se a Testemunha ainda acredita no Corpo Governante como sendo o representante de Deus na Terra. Caso a Testemunha lhes diga que não tem mais o Corpo Governante como guia espiritual, ou que não aceita mais certas “verdades” ensinadas por ele, os anciãos geralmente pedem que ela não fale a mais ninguém sobre suas dúvidas. Caso tomem conhecimento de que a Testemunha comentou sobre suas dúvidas com mais alguém ou que tenha tentado convencer alguém a respeitos da veracidade de seus conceitos divergentes, então a recomendação é que sigam as instruções que constam em Tito 3:10, que é como segue:
Quanto ao homem que promove uma seita, rejeite-o depois de aconselhá-lo com firmeza uma primeira e uma segunda vez. (Tito 3:10).
A respeito do que realmente significa esse texto, o Corpo Governante dar a seguinte explicação:
As Escrituras alertam, no entanto, que alguns tentariam ficar entre o povo de Deus para ali procurar desencaminhar outros. O apóstolo Paulo advertiu: “Dentre vós mesmos surgirão homens e falarão coisas deturpadas, para atrair a si os discípulos.” (Atos 20:30) Ele oportunamente alertou os cristãos a ‘ficarem de olho nos que causam divisões e motivos para tropeço contra o ensino que aprendestes, e que os eviteis’. — Romanos 16:17, 18.
Portanto, se alguém se tornar falso instrutor entre os verdadeiros cristãos, como no caso de Himeneu e Fileto nos dias de Paulo, os pastores do rebanho terão de tomar medidas protetoras. Se a pessoa rejeitar a admoestação amorosa deles e continuar a promover seita, uma comissão de anciãos poderá desassociar, ou expulsar, tal pessoa por apostasia. (2 Timóteo 2:17; Tito 3:10, 11) Os irmãos e irmãs individuais na congregação acatariam a instrução de Paulo de ‘evitar’ aquele que tentou ‘causar divisões’. João aconselhou similarmente: “Se alguém se chegar a vós e não trouxer este ensino, nunca o recebais nos vossos lares, nem o cumprimenteis.” — 2 João 10. (A Sentinela de 15 de outubro de 1986, página 31).

Ilustrativo disso é um caso relatado por Raymond Franz; segundo ele, uma Testemunha de Jeová de nome Edward Dulamp fora levada a julgamento porque chegou ao conhecimento dos anciãos que ele estava conversando com outras Testemunhas sobre certos assuntos bíblicos e apresentava conceitos divergentes dos defendidos pela organização. Segundo Franz, note qual era a preocupação dos anciãos:

A comissão judicativa queria saber se ele [Edward Dunlap] falaria sobre estes pontos com outras pessoas. Ele respondeu que não tinha nenhuma intenção de fazer “campanha” entre os irmãos. Mas disse que, se as pessoas viessem até ele em particular em busca de ajuda e ele pudesse dirigi-las para os textos bíblicos que lhes fornecessem respostas às suas perguntas, faria isso, pois se sentiria na obrigação de ajudá-las. Com toda a probabilidade, este foi o fator decisivo. Tal liberdade de discussão e expressão sobre a Bíblia em particular não era aceitável, mas era vista como herética, como perigosamente desagregadora (Crise de Consciência, de Raymond Franz, página 366) .

Dulamp foi excomungado apenas porque os anciãos não puderam ter garantias de que ele se manteria calado sob seus conceitos divergentes de certas doutrinas defendidas pelo Corpo Governante.
Como se pode ver, essas expulsões sob a acusação de apostasia tem um objetivo claro: evitar que qualquer ideia considerada apóstata circule entre as Testemunhas, mesmo que essas ideias sejam apenas declarações feitas pela religião, lá nos seus primórdios. Fez-se de tudo para coibir a que isso acontecesse: primeiro, dificultou-se a que a literatura antiga circulasse entre as Testemunhas; segundo, exortou-se que não se devia ler a literatura apóstata. Mas, tendo isso sido desconsiderado por algum, tendo-se rompido a penúltima barreira de contenção, parte-se então para a tática mais drástica à disposição: a reluzente espada da excomunhão.
Diante dessas consequências,  muitas Testemunhas de Jeová de fato passam a ver os “apóstatas” como verdadeiros inimigos da verdade. E é justamente isso que o Corpo Governante deseja fazer parecer. Uma vez que as Testemunhas estão proibidas de ler a literatura “apóstata”, estando, portanto, impossibilitadas de checar qualquer coisa, a autoridade religiosa se sente à vontade para poder fazer todo tipo de acusação contra eles – e sem se sentir obrigada a provar o que quer que seja. Vejamos, a título de exemplo, algumas das acusações.
Acusadas as ex-Testemunhas

o   Contam apenas mentiras e meias-verdades
Uma das acusações mais frequentes é de que os apóstatas contam mentiras e meias-verdades sobre as Testemunhas de Jeová, procurando manchar a reputação delas perante a comunidade. Surpreendentemente, em todos os casos que cito abaixo, não há uma única fonte citada, um livro sequer, um jornal que seja, algo que se possa checar se as acusações dos “apóstatas” são de fato falsas, mentirosas, difamatórias.

Sobre a expressão “projéteis ardentes” de Efésios 6: 16, a revista A Sentinela deu a seguinte explicação:

O que seriam esses “projéteis” atualmente? Talvez graves insultos, mentiras e meias-verdades divulgadas por inimigos e apóstatas para enfraquecer a nossa fé (A Sentinela de 15 de março de 2007, página 29).

Veja outros casos:

Eles [os apóstatas] muitas vezes recorrem a distorções, a meias-verdades e a flagrantes falsidades. Jesus sabia que seus seguidores seriam vítimas de pessoas que diriam “todo tipo de calúnia contra” eles. (Mateus 5:11, NVI) (A Sentinela de 15 de fevereiro de 2004, páginas 16,17).
O discurso “Proteja-se contra todo tipo de engano” mostrou que é sábio tratarmos como veneno as distorções, as meias verdades e as mentiras descaradas, propagadas por apóstatas (A Sentinela de 15 de janeiro de 2003, página 23)
Cumprindo esta profecia [do “escravo mau” de Mateus 24] de forma notável, os apóstatas estão hoje semeando ativamente mentiras e propaganda em muitos países, até mesmo em cumplicidade com alguns em posição de autoridade nas nações. (A Sentinela de 1º de maio de 1998, página 21).
Os apóstatas divulgam publicações que recorrem a distorções, meias-verdades e rematadas falsidades [...] Algumas das publicações dos apóstatas apresentam falsidades por meio de “conversa suave” e “palavras simuladas”. (A Sentinela de 1º de julho de 1994, página 12).

Em todos esses casos, quais foram as mentiras, as meias-verdades, as distorções contadas pelos “apóstatas”? A única forma de uma Testemunha de Jeová poder checar isso era recorrendo a uma fonte, a um jornal, a um livro, a um documento que constasse uma, ou algumas, das supostas mentiras dos “apóstatas”. A autoridade religiosa, porém, levando em conta que as Testemunhas foram exortadas a não ler matéria “apóstata”, considera que não precisa dizer a elas a fonte das acusações, já que lhes seria inútil. Ainda assim, com esse argumento aparentemente válido, a organização religiosa age de modo muito irresponsável para com toda a comunidade de seus leitores, inclusive os apóstatas. Pois, em não citar fontes que possibilitem checar a autenticidade das acusações, ela deixa pairando uma nuvem negra sobre os “apóstatas”, os quais, impossibilitados de poder contestar qualquer coisa de que se lhes acusam, ficam a depender da boa vontade de outros quanto a considerá-los inocentes ou culpados.
Um exemplo clássico de “nuvem negra” surgiu no anuário de 1997, quando se relatou o caso em que um grupo evangélico exibiu na TV um vídeo considerado apóstata:

Em Yacuiba, Bolívia, um grupo evangélico providenciou que uma rede de TV exibisse um filme que evidentemente foi produzido por apóstatas. Em vista dos maus efeitos desse programa, os anciãos decidiram visitar duas redes de TV e oferecer-se para pagar pela exibição para o público dos vídeos Testemunhas de Jeová — A Organização Que Leva o Nome e A Bíblia — Um Livro de Fatos e Profecias. Depois de ver os vídeos da Sociedade, o proprietário de uma emissora de rádio ficou indignado com as informações deturpadas apresentadas no programa dos apóstatas e ofereceu-se para fazer anúncios gratuitos do congresso de distrito para as Testemunhas de Jeová. A assistência foi bem maior do que a esperada, e muitas pessoas sinceras passaram a fazer perguntas nas visitas das Testemunhas de Jeová na pregação (Anuário das Testemunhas de Jeová de 1997, páginas 61,62).

Sem se dispor a dizer qual o nome do filme “apóstata” e sem sequer dizer quais eram as acusações, o Corpo Governante compraz-se em relatar que, depois de assistir às duas versões, um boliviano “ficou indignado com as informações deturpadas apresentadas no programa dos apóstatas”.  Note: a citação desse boliviano parece fazer sentido porque ele assistiu às duas versões, portanto, pode estar fazendo um julgamento justo. O Corpo Governante gostou que seus representantes tenham conseguido fazer que duas redes de TV exibissem a sua versão dos fatos. Curiosamente, ele, ao passo que divulga sua lista de vídeos assistidos por bolivianos, evita citar o título do filme “apóstata”, claramente, com o propósito de que os seus leitores, Testemunhas ou não, tenham dificuldade de assisti-lo e fazer, eles próprios, um julgamento sobre se de fato esse filme continha informações “deturpadas”.
Um caso parecido foi publicado dois anos antes:
Durante uma mesa-redonda na TV, na Alemanha, uns apóstatas inventaram uma porção de mentiras sobre as Testemunhas. Um telespectador reconheceu as histórias inventadas pelos apóstatas e se sentiu induzido a recomeçar seu estudo bíblico com as Testemunhas. Sim, o vitupério público às vezes produz resultados positivos! — Note Filipenses 1:12, 13. (A Sentinela de 1º de abril de 1995, página 29).
Também nesse caso, um único testemunho de um único telespectador é tido como suficiente para atestar como mentirosas as afirmações dos considerados apóstatas. Nenhum leitor, Testemunha ou não, terá a oportunidade de julgar por si quanta verdade, o quanta mentira, contaram os “apóstatas”, mas isso não importa – e importa sim que a palavra da autoridade religiosa fique acima de qualquer investigação, uma vez que, assim como na Bolívia, não se diz absolutamente nada que se possa identificar qual TV e em qual data se exibiu o tal programa. 
Em ambos os casos, fica a nuvem negra pairando sobre os considerados apóstatas. Dificilmente se saberá que acusações foram feitas, mas as Testemunhas de Jeová, em sua maioria, tiveram sua convicção mais solidificada – isto é – de que os “apóstatas” são pessoas iníquas e que apenas contam meias-verdades e mentiras.
Porém, há uma acusação que a Torre de Vigia cita e procura refutar. Trata-se da acusação de que a religião das Testemunhas tem destruído muitas famílias e tornado infeliz a vida de muitas outras. Quem leu no primeiro capítulo sobre o modo como os fiéis são exortados a tratar os ex-integrantes, o incentivo explícito para que filhos desprezem os pais, que pais desprezem os filhos, que não permitam que cônjuge desassociado ou dissociado participe do estudo bíblico em família, que pais sejam avaliados se continuam aptos a continuar como pastores caso aceitem de volta ao lar um filho que foi expulso ou deixou a religião, quem leu isso está consciente do efeito destrutivo que isso pode ter em uma família. Mas que resposta a Torre de Vigia fornece a essa acusação?
Como é típico, a Torre de Vigia nunca responde diretamente a perguntas ou acusações; antes, prefere ela própria dizer qual é a acusação, bem como escolhe a extensão e direcionamento da resposta. Determinado esses limites, no seu site JW.ORG foi postado resposta à seguinte pergunta: “As Testemunhas de Jeová dividem ou unem as famílias?” Como era de se esperar, a resposta contem depoimentos de cônjuges que tiveram suas vidas melhoradas depois que um deles se tornou Testemunha de Jeová. Fala também da constante campanha que faz para se ter um casamento bem sucedido e finalmente, em sua conclusão, quando então reconhece que há de fato casamentos arruinados em seu meio, os autores deixam de lado a defesa e partem para a acusação e dizem que os casamentos são arruinados em razão de intolerância religiosa por parte do cônjuge que não é Testemunha de Jeová. Não há absolutamente nenhuma menção à real acusação que se faz à religião, isto é, que muitas famílias são destruídas em razão da política de ostracismo social imposta ao membro familiar que não mais pertence ao grupo.
É deveras surpreendente que essa resposta, muito hipócrita em sua essência, parta justamente de quem acusa seus opositores de contar mentiras e meias-verdades.

o   Orgulhosos, “pecadores habituais”
Outra acusação comum feita aos considerados apóstatas é que eles são pessoas ressentidas, orgulhosas, gananciosos, mal intencionados, pervertidos, “pecadores habituais”, “apóstatas  descontentes” e muitos outros qualificativos – todos eles feitos com o objetivo de criar-lhes uma imagem negativa na mente das Testemunhas. Veja alguns exemplos de acusações desse tipo:
Alguns que no passado eram cristãos fiéis se afastaram deliberadamente de Deus, talvez por ressentimento, orgulho ou ganância, e agora são apóstatas que lutam contra o espírito de Deus (Despertai! de 8 de fevereiro de 2003, página 13).
Decida no seu coração nunca nem mesmo tocar no veneno que os apóstatas querem que absorva. Acate as ordens sábias, mas firmes, de Jeová, de evitar completamente os que querem enganá-lo, desencaminhá-lo e desviá-lo para os caminhos da morte.  (A Sentinela de 15 de março de 1986, página 20).
Os praticantes do pecado não ‘têm visto’ a Jesus com o olho da fé; tampouco os pecadores habituais, como os apóstatas, ‘conhecem’ e apreciam a Cristo como o expiador de pecados, o “Cordeiro de Deus”. — João 1: 36 (A Sentinela de 15 de julho de 1986, página 16).
O progresso havido no período de dez anos mais recente é de interesse especial para nós agora. Foram anos de provação e peneiração, visto que alguns apóstatas descontentes deixaram a organização (A Sentinela de 1º de abril de 1984, página 12).

o   Agentes do Diabo
Além de descrições objetáveis como essa, o Corpo Governante também procura associá-los ao Diabo, como mais um recurso de criar-lhes repulsa na mente das Testemunhas:
De vez em quando têm surgido nas fileiras do povo de Jeová alguns que, iguais ao Satanás original, adotaram uma atitude independente e crítica. Não querem servir “ombro a ombro” com a fraternidade mundial. (Veja Efésios 2:19-22.) (A Sentinela de 1º de junho de 1982 páginas 28,29).
Somos informados de que “o próprio Satanás persiste em transformar-se em anjo de luz”. Do mesmo modo, os servos dele, inclusive os apóstatas, são “trabalhadores fraudulentos” que “também persistem em transformar-se em ministros da justiça” (A Sentinela de 1º de março de 2003, página 11).
Alguns, como certos apóstatas da atualidade, trabalham deslealmente quais agentes de Satanás para minar a fé de membros recém-associados da congregação cristã. (2 Coríntios 11:13). (A Sentinela de 15 de agosto de 1990, página 16).

o   Odeiam a Deus e as Testemunhas
Como mais um dentre muitos outros recurso para desabonar os “apóstatas”, o Corpo Governante procura incutir na mente das Testemunhas que eles odeiam a Deus e às Testemunhas como povo e indivíduos.

Mateus e Marcos, escritores de Evangelhos, usam a palavra grega fthó·nos para descrever a motivação dos responsáveis pelo assassinato de Jesus. (Mateus 27:18; Marcos 15:10) Sim, estes foram induzidos pela inveja. A mesma emoção prejudicial faz com que os apóstatas se tornem ferrenhos odiadores dos que antes eram seus irmãos. (1 Timóteo 6:3-5) (A Sentinela de 15 de setembro de 1995, página 7).
Sobre estes, o salmista [Davi] disse: “Acaso não odeio os que te odeiam intensamente, ó Jeová, e não tenho aversão aos que se revoltam contra ti? Odeio-os com ódio consumado. Tornaram-se para mim verdadeiros inimigos.” (Salmo 139:21, 22) Foi por odiarem intensamente a Jeová que Davi os encarava com repugnância. Os apóstatas estão incluídos entre os que mostram seu ódio por Jeová por se revoltarem contra ele. A apostasia é, na realidade, uma rebelião contra Jeová (A Sentinela de 1º de outubro de 1993, página 19).

Com o uso de todos esses recursos, o Corpo Governante consegue impor às Testemunha todo um receio de sequer tentar aproximação com alguém considerado apóstata. Ler seus livros, para a maioria delas, está completamente fora de cogitação. E como dito antes, mesmo alguns que se permitam ler alguma coisa “apóstata”, seja em um livro ou na internet, pode depois ficar com grave crise de consciência, pode ficar certos de que desagradou a Deus.  E isso foi exatamente o que senti quando, depois de ser excomungado, permiti-me, pela primeira vez, ter algum contato com material “apóstata.” Com isso, apenas concedi-me a licença de continuar o contato porque prometi a mim mesmo que, quando voltasse a fazer contato com os pastores Testemunhas, iria revelar-lhes que havia cometido também esse “pecado”.

É graça a esse artifício que a organização religiosa tem conseguido ficar como que pura mesmo nos dias atuais, com a internet em boa parte dos lares dos fiéis. Tendo assim criado um ambiente esterilizado, a autoridade religiosa livra-se de questionamentos incômodos e mantém sua imagem de santa, o que, por sua vez, acaba por ter, pelo mundo inteiro, as Testemunhas a defendê-la, uma vez que foram mantidas ignorantes a respeitos de graves acusações.

Mas considerando que os “apóstatas” são assim tão mentirosos, que há muitas informações falsas circulando a respeito das Testemunhas de Jeová, por que exatamente o Corpo Governante não se defende dessas falsas acusações? (Isso será assunto da parte 2).



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Testemunhas de Jeová – o que elas não lhe contam?

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5 comentários:

  1. Olá Lourisvaldo! Já li todo seu livro e volto a parabeniza-lo.Estou passando por um um momento muito triste,pois mesmo depois de muitos anos afastada da Organização,tinha uma única amiga lá de mutos anos também e ela parecia que estava respeitando a minha decisão,mas acabou de virar-me as costas deixando em minha casa uma carta com as características da Torre de Vigia,considerando-me com essas descrições.Não pude conter as lágrimas relendo essa matéria.

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    1. Olha, sinto por sua situação! É triste, mas acontece. Messas horas resta-nos apenas seguir com nossa vida, com os novos amigos que encontramos nesta caminhada.

      Muito obrigado por ter lido meu livro. Sinto-me honrado por isso.

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  2. Obrigada pelo retorno,mas eu é que me sinto privilegiada por ter tido acesso a seu livro...são pessoas como você,com o exaustivo trabalho de pesquisa e traduções de matérias,que nos ajudam a se libertar desta masmorra chamada Torre de Vigia! Abraços!

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  3. Muito bom seus artigos, deviam ser transformados em vídeos. O audiovisual fala muito alto. Parabéns!

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    1. Muito obrigado!

      Não sei se tenho o dom da fala para investir em vídeo.

      Acho que não tenho.

      Mas agradeço a sugestão. Quem sabe eu não tente algum dia...

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