1914 – como as Testemunhas de Jeová justificam essa data?

Pergunte a uma Testemunha de Jeová o que ela tem a dizer sobre 1914. Ela talvez te diga que nessa data Cristo “voltou” e desde então, no céu, tem reinado, de modo invisível, como Rei do Reino de Deus. Como prova disso, ela provavelmente citará os “sinais” indicados por Cristo. Mas caso você não ache isso convincente, ela talvez te proponha conversar com um membro mais instruído ou talvez te ofereça um livro que responde à sua pergunta.  Mas afinal, como chegaram elas à conclusão de que Cristo “voltou” em 1914? Como justificam essa data?

O início

Tudo começou lá no final do século XIX, com o jovem Charles T. Russell (foto). Recorrendo aos livros bíblicos de Jeremias e Daniel, ele entendeu que Cristo voltaria cerca de 30 anos à frente, exatamente em 1914. Diferentemente do conceito que se tem hoje sobre essa data, Russell entedia que Cristo, nessa data, assumiria o Reino do mundo, levando seus seguidores e ele para o céu. Obviamente que Cristo não voltou em 1914 e Russell morreu em 1916, deixando alguns milhares de seguidores bem confusos.

Coube então ao seu sucessor, Joseph F. Rutherford, dizer alguma coisa aos fieis sobre a data fracassada. Ele podia candidamente admitir que Russell cometera um erro grave, podia pedir desculpas aos fiéis e procurar não repetir tal erro. Mas não, em uma atitude nada nobre, ele preferiu confirmar que Russell estava certo em afirmar que Cristo voltaria em 1914 e que de fato voltou, não no sentido que esperavam, mas que voltou no sentido de começar a reinar lá no céu, com Sua atenção voltada para a Terra, agora de modo especial. 

Em razão dessa atitude, a data de 1914 (agora com nova roupagem) recheia as páginas da revista A Sentinela e é aclamada aos quatro ventos pelas Testemunhas de Jeová.

A justificativa

Conta o capítulo 4 do livro bíblico de Daniel o caso de uma grande árvore que, de tão grande, atingia os céus. Ela foi cortada pelo tronco e impedida de voltar a crescer por “sete tempos”.  À base do capitulo 11 de Apocalipse, que relaciona três tempos e meio com 1260 dias, entendeu-se que “sete tempos” soma o dobro de dias, a saber, 2520. Por toda a era cristã, prevaleceu entre alguns estudantes da Bíblia o conceito de que, em se tratando de dias proféticos, um dia equivale a um ano (em defesa desse conceito, cita-se o livro bíblico de Números, capítulo 14, onde Moisés relata que o pecado de alguns espiões resultou em a nação de Israel ser condenada a vagar por 40 anos no deserto – em razão de que o pecado dos espiões transcorreu logo depois de passarem 40 dias em um serviço de espionagem). Considerando isso, os 2520 dias deviam equivaler a um período de 2520 anos.

Mas que aplicação profética se podia fazer com esses 2520 anos? Analisando partes do capitulo 4 de Daniel e partes do capitulo 21 do evangelho de Lucas (veja citações abaixo), entendeu-se que parecia tratar-se de um período de tempo entre a queda de Jerusalém, cujos reis eram como que empossados por Deus, até a entronização de Cristo como rei do Reino de Deus.

Esta sentença é por decreto dos vigias, e esta ordem por mandado dos santos, a fim de que conheçam os viventes que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer, e até ao mais humilde dos homens constitui sobre ele (Daniel 4: 17; ACF).

E cairão ao fio da espada, e para todas as nações serão levados cativos; e Jerusalém será pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se completem (Lucas 21: 24; ACF).

Concluído isso, bastava que se soubesse em que ano a Jerusalém antiga foi destruída e tomar essa data como ponto de partida para os 2520 anos, ao fim dos quais Cristo deveria voltar e assumir como rei do Reino de Deus.

Pela época de Russell e até por volta de 1940, a liderança religiosa mostrou-se muito confusa quanto a determinar em que ano o império de Nabucodonosor destruiu a cidade de Jerusalém. Mas levando em conta que o capítulo 25 de Jeremias (versículos 11 e 12) fala de um tempo de setenta anos de desolação da terra de Israel, sendo que o fim desse período seria marcado pela punição divina ao próprio império da Babilônia, bastou que se contasse para trás 70 anos a partir da queda de Babilônia diante dos persas, em 539 a.C., para que se chegasse à data de 607 a.C. (com alguns ajustes ao longo do tempo) como sendo o ano da queda de Jerusalém. Pronto: contando 2520 anos daí para frente, chega-se a 1914 d.C., como sendo o ano marcado para a volta de Cristo (para esse último cálculo, é preciso levar em conta que não houve ano zero entre 1 a.C. e 1 d.C.).

Dispondo de todas essas informações, os seguidores de Russell ficaram deslumbrados e milhares dedicaram suas vidas em prol dessa causa, anunciado a tantos quanto puderam que Cristo voltaria em 1914. Como visto na postagem anterior, o próprio Russell fez diversas viagens internacionais de pregação, além de vender todos os seus bens (tinha ele grande patrimônio) e gastar todo o dinheiro na obra ministerial. Mas como sabemos, 1914 chegou e todas as garantias que os cálculos lhes deram resultou ser apenas carruagens de areia.

Cálculos questionados

Apesar disso, apesar do fracasso profético, foi sobre a data de 1914 que a liderança das Testemunhas de Jeová ergueu a base de sua autoridade espiritual. Como é possível verificar em sua literatura mais recente, ela afirma de modo categórico que, logo depois de 1914, Cristo escolheu essa liderança religiosa para representá-Lo na Terra e hoje, qualquer pessoa que questiona essa autoridade, é considerada como estando questionando ao próprio Deus, algo que seria indigno de qualquer ser humano.

Mas algo mais precisa ser dito a respeito dos cálculos em torno da data de 1914. Desde o começo, ela sempre teve os seus críticos. A Russell, por exemplo, foram apresentadas informações que davam conta de um grave erro em seus cálculos, o qual indicava que a data da destruição de Jerusalém foi cerca de 20 anos depois da data estabelecida por ele, o que adiaria o fim dos 2520 anos para 1934. Russell não foi humilde o suficiente para admitir o erro – e nem tampouco seus sucessores.

Naquela época a História e Arqueologia já davam passos largos no que diz respeito à história da Palestina, Egito e Antiga Babilônia. Nos dias atuais, há descobertas significativas sobre aquela época e não há sequer um autor conhecido que defenda a data de 607 a.C. como sendo o ano da destruição de Jerusalém; antes, todos eles dão uma data que varia entre 586 a 589 a.C. Apesar disso, a autoridade religiosa das Testemunhas de Jeová mostra-se irredutível, tendo inclusive publicado recentemente dois artigos com o fim de defender essa data (veja a revista A Sentinela de 2011, edições de 1º de outubro e 1º de novembro).

Em tais artigos, a autoridade religiosa recorre inclusive à História e Arqueologia em sua defesa, o que certamente deixou fascinadas milhares ou milhões de Testemunhas de Jeová. Tais artigos, no entanto, não ficaram sem respostas. Nesse mesmo ano o historiador sueco Carl Olof Jonsson (ver seu site), que já havia escrito um livro sobre essa questão, dedicou cerca de 60 páginas aos artigos, refutando de forma cabal a argumentação da autoridade religiosa; tradução aqui (parte 1) e aqui (parte 2). Doug Mason também os refutou em cerca de 160 páginas (ver seu site). Porém, para a infelicidade de milhares ou milhões de Testemunhas, ambos os autores são praticamente desconhecidos (ou se conhecidos, ignorados) pela vasta maioria delas. Isso em razão de que a autoridade religiosa as proíbe de ler qualquer matéria que contraria os seus argumentos, principalmente se o autor ou autora é ex-membro da religião, como é o caso de Jonsson.

O que tudo isso nos ensina? Ensina-nos que mesmo argumentos aparentemente abalizados pelas ciências humanas devem ser muito bem considerados e examinados antes de nos deixarmos influenciar por eles. Sabemos que agir assim é muito difícil quando confiamos profundamente em alguém, principalmente se esse alguém nos ameaça de punição, caso dermos indícios de desconfiança em sua autoridade (como é o caso da liderança religiosa em consideração). Mas assim caminha a humanidade, e segundo o sábio, mais importa aprender dos erros alheios, que com os seus próprios. Não tive eu tal sorte, mas cá estendo ao amado leitor o custo de meus erros: 20 anos preciosos gastos inutilmente a uma causa mentirosa, fraudulenta, espiritualmente perniciosa, e que se perderam para sempre.